Qual o Significado de Shukke Tokudo (Ordenação Monástica)?

outubro 31, 2008 às 3:17 pm | Publicado em Blogroll, Meditação em Porto Alegre, Prática Zen Budista, Preceitos Budistas, Qual o Significado, Vídeo, Zen Budismo em Porto Alegre | 2 Comentários
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A Cerimônia da Ordenação Monástica Soto Zen, Shukke Tokudo (出家得度), representa o momento quando um praticante leigo torna-se monge-noviço ou monja-noviça (Jôza 上座) e entra na primeira fase de seu treinamento, se preparando para cumprir o papel social de sacerdote.

Mas qual o significado de Shukke Tokudo? Para que alguém torna-se monge?

Os ideogramas chineses (kanjis) para “tokudo” (得度) significam “obter a travessia”, ou “entrar no caminho para a outra margem” – a travessia para a outra margem, que é a Iluminação, e os kanjis para “shukke” (出家) significam “sair do lar”. Assim, “shukke tokudo” significa “obter a travessia, saindo do lar, deixando os laços familiares”, enquanto que o “zaike tokudo” significa “obter a travessia, ficando no lar”.

Representa uma mudança na prioridade da vida do indivíduo. E qual é esta nova prioridade?

Tenho ouvido muitas pessoas afirmarem que a prioridade do monge deve ser o “servir os outros” ou “servir o Darma”. Tenho visto muitas pessoas buscarem a ordenação “para se tornar alguém”, “para ganhar um título, uma posição social”, “para salvar pessoas”. Tudo isto pode ser muito bonito – e certamente não diria que estaria completamente errado. Mas, se ao iniciar o caminho, o novo monge-noviço pensa demais em “servir os outros”, ele corre o risco de perder o foco correto e desviar a sua prática, por estar assumindo responsabilidades demais e envolvendo-se com tentativas de “servir os outros” cedo demais, antes de realmente estar corretamente preparado para isto. Neste processo, desvia a atenção do seu interior e da busca da realização de sua Natureza Buda. Pode até acabar usando os ensinamentos budistas, mal-interpretados, para justificar e reforçar comportamentos neuróticos. Quantos bons candidatos acabam se perdendo nos jogos do ego condicionado nestas horas.

Quando pesquisamos os sutras clássicos e os ensinamentos de Mestre Dogen, a mensagem é muito clara: nós nos ordenamos monges para buscar a nossa própria iluminação, por um caminho mais fácil que o caminho do praticante leigo, com as suas preocupações com a família e o trabalho profissional. A iluminação é a prioridade do monge-noviço. Isto é verdade, mesmo na tradição Mahayana, com os Quatro Votos dos Bodisatva – servir e libertar os outros vem depois – depois que tenhamos atingidos algum nível de realização, depois da nossa própria libertação (mesmo que parcial), depois que tenhamos condições de servir os outros com Sabedoria e Compaixão – e a confirmação deste fato por parte dos nossos professores. Primeiro, temos que nos preparar adequadamente.

Portanto, ao receber a ordenação, o candidato torna-se um noviço – um monge-noviço, um estudante – um estudante do Darma, cultivando sua própria iluminação. Em japonês, é chamado de “unsui“, o que corresponde aproximadamente ao “sekha” (pali) dos sutras clássicos de Buda e tradição Teravada atual.  Ao “deixar o lar”, a sua prioridade não é mais sua família, suas amizades, sua casa, seu trabalho profissional – a sua prioridade absoluta é o cultivo de sua própria mente, sua própria realização do Caminho. Isto é o significado de tornar-se monge-noviço (ou monja-noviça). Não significa, se for casado, que tenha que abandonar o casamento, mas significa, sim, que deve assumir a mudança de prioridade – por isso, na cerimônia de ordenação, são feitas reverências aos pais e familiares, se “despedindo”. Veste agora o manto preto do monge-em-treinamento (o “kesa” preto do “unsui”).

Nas condições ideais, ao receber a ordenação, o monge-noviço entra na fase do treinamento de “calar a boca e limpar o chão”, um período onde é permitido muito pouco contato com o público em geral (quanto menos “aparecer”, melhor) e todo o seu esforço é canalizado em sentar em zazen, praticar o samu (trabalho ou atividade diária) e observar, escutar, perceber – aprender com o corpo e o coração. É o tempo de aprender a fluir, como “unsui” – nuvem-água – que vai onde o vento o leva e se adapta a qualquer recipiente. Para nós ocidentais, se pudermos fazer parte de nosso treinamento num mosteiro oficialmente reconhecido como mosteiro de treinamento, este também pode ser um tempo incrível de aprender a ser simplesmente parte de um grupo – integrado com o grupo – sem qualquer aspecto de querer “ser especial” ou de “ser diferente” – algo quase inconcebível depois de todo o nosso condicionamento cultivando a nossa “individualidade”.

Este treinamento deve ser feito em íntimo convívio com o professor. Isto é a tradição, desde a época de Buda. Na tradição Teravada, o noviço deve morar junto com o seu professor durante um mínimo de cinco anos e, na tradição Soto Zen, não é muito diferente. Infelizmente, aqui no Ocidente, temos muitos noviços que raramente têm a oportunidades de passar mais que alguns poucos dias periodicamente na convivência direta com os seus professores. Isto é uma coisa triste, pois, muitos destes noviços, apesar de toda a sua boa vontade e esforço, acabam desenvolvendo uma espécie de “Budismo-achismo”, baseado mais nas suas próprias interpretações de livros que na prática real e na transmissão dos ensinamentos diretamente de um professor de carne e osso. Tenho encontrado versões de “budismo-hippie”, “budismo-nova era”, “budismo-espirita”…

Tudo isto faz parte da transmissão de uma cultura para outra – quando olhamos a história do budismo, vemos que o processo da transmissão dos ensinamentos da Índia para a China também passou por muitas dificuldades e levou séculos – sim, séculos – para o Budismo se enraizar, se adaptar à nova cultura, e para ficarem clarificadas as distinções entre o Budismo e as religiões-filosofias nativas chinesas, o Taoismo e o Confucionismo. Aqui no Brasil, estamos muito no começo deste processo. Vamos passar por nossas dificuldades, mal-entendidos e confusões. Mas, desde que haja uma única pessoa que tenha compreendido o Darma para continuar a transmissão (e já temos várias pessoas com essa compreensão aqui no Brasil!), o Budismo continuará a crescer no país do verde e amarelo.

Segue a orientação dada pelo Saikawa Roshi, Superintendente Geral da Escola Soto Zen na América do Sul, ao final da (re)ordenação monástica do chileno Meiyô Vargas realizada durante o Retiro Aberto em Florianópolis no dia 17 de outubro de 2008:

“O Caminho de Buda é um caminho. Analisar este caminho e tomar decisões seria acreditar, compreender, praticar, realizar e aplicar.

“Primeiro, temos que acreditar no Caminho de Buda. Em seguida, precisamos compreender em que direção andar e praticar, de acordo com esta compreensão. Você precisa realmente chegar a enxergar o seu Verdadeiro Eu, sua Verdadeira Natureza. Então, você aplicará isto na sua vida diária.

“No início, você praticará em benefício próprio. Mas, se você realizar o Caminho, ou Alcançar o Despertar, você terá que trabalhar 24 horas por dia para salvar os outros – do mesmo jeito como foi a vida de Shakyamuni Buda.

“Então, a vida de um “Shukke”, de um monge – alguém que deixou o lar – é muito, muito diferente. Viver neste mundo dualista e transmitir os ensinamentos do Darma da Unidade do Todo é uma coisa muito difícil – é difícil fazer as pessoas entender. Mas, para dar Paz e Harmonia, você terá que doar a sua vida aos outros.

“Como você desejou ser monge, você mostrou para mim a sua grande determinação. Devo lhe dar os meus parabéns – ou não?”

. Assistir o vídeo de uma cerimônia de Ordenação Monástica no Japão (em japonês), mostrando o momento em que o Professor de Ordenação, representando o próprio Buda, raspa a parte final do cabelo do candidato – chamado de “shura” – que somente um Buda pode raspar.

Ler mais:
– A Ordem Monástica da Escola Soto Shu
Formação de um monge Soto Zen
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Qual o Significado de Shuso (Líder dos Noviços)?
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Qual o Significado de Unsui (1)?
Qual o Significado de Shukke Tokudo?
Ordenação Monástica
– Ordenação Unsui em Florianópolis
Qual o Significado de Jukai?
– Os Preceitos do Bodisatva

Este artigo em espanhol no blog Mas que Palabras

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