Reportagem sobre Costura Budista

Tecendo o manto de Buda
Ana Elizabeth Diniz / Especial para O Tempo

Monja Isshin, fev 2006

Eles encontraram no legado do Bodisatva (Buda) o caminho para a paz e a felicidade. E uma das formas de expressarem essa convicção é através da costura do rakusu, o manto de Buda, uma espécie de minivestimenta, usada como um babadouro, por cima da roupa. A Monja Isshin está em Ouro Preto conduzindo o retiro para a costura do manto sagrado de Buda.

Acredita-se que essa prática tenha surgido no Japão em meados do século 19. O que menos importa é a estética da costura.

Enquanto costuram, os praticantes relembram, internamente, os três pilares que sustentam essa filosofia: retorno e me abrigo em Buda (o Buda histórico e o Buda em mim), retorno e me abrigo no darma (ensinamentos) e retorno e me abrigo na sanga (a comunidade dos praticantes).

O rakusu é confeccionado em retiros que acontecem em templos zen. Apenas duas monjas brasileiras estão autorizadas a ministrar esses retiros. Quem está conduzindo a prática em Ouro Preto é a monja Isshin Havens, 58, nascida em Washington, mas criada em uma pequena cidade no estado de Ohio.

Seu nome de monja, Isshin, vem da tradição religiosa japonsesa Soto Shu Zen budismo e significa “um coração-mente” ou “coração-mente unificado”. Isshin é assistente da monja Coen na Comunidade Zen Budista Tenzui Zendo – Zendo Brasil, localizada no bairro de Pinheiros, em São Paulo.

Antes disso, ela esteve durante quatro anos em treinamento no mosteiro feminino de Nagóia, no Japão, e dez meses nos Estados Unidos. Sua vinda para o Brasil foi através da música.

Integrou a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo e participou de shows e gravações de artistas como Tom Jobim, Maria Bethânia, Burt Bacharach e tocou sob a batuta do maestro Isaac Karabchevsky. Apesar da carreira bem-sucedida, Isshin sentia um vazio.

Faltava algo. Depois de muita busca, ela encontrou o seu caminho, em um retiro zen, realizado pela monja Coen, de São Paulo. Nesta entrevista a O TEMPO, Isshin fala sobre a sua opção pelo caminho monástico e o sentido do manto de Buda.

O TEMPO – Qual foi a sua formação religiosa?
Monja Isshin – Fui criada numa família protestante extremamente fundamentalista e rígida, e que, apesar de todo fervor religioso, era cheia de violência. Na igreja, apesar de se falar que Deus é amor, eu só ouvia sobre o inferno e pecado.

Para eles, as pessoas que pertenciam a outras igrejas (mesmo protestantes) ou a outras religiões iriam para o inferno. Somente os membros daquela igreja em particular iriam para o céu. Havia muita discriminação.

Para mim, um Deus de amor tão cruel que enviava 99,9% de suas criaturas para um inferno eterno era algo totalmente inconcebível. A discriminação me doía o coração e a violência me parecia uma grande hipocrisia. Quando completei 16 anos, saí daquela igreja e comecei minha busca espiritual.

Li alguma coisa sobre a cultura japonesa ainda no colégio e o meu primeiro livro sobre o budismo já na Europa. Apaixonei-me pelos conceitos práticos. Chegando ao Brasil, passei a pesquisar a espiritualidade brasileira. Visitei e frequentei quase tudo que há de prática espiritual.

Senti que ainda não estava na “minha casa”. Descobri que todas são práticas bonitas. Vi as pessoas praticando suas religiões com muita pureza e sinceridade. Percebi que todas as religiões buscam a mesma fonte e procuram ensinar as pessoas a amar.

Por isso, sou forte defensora do diálogo inter-religioso e da liberdade de crença. Quando conheci o zen budismo e a monja Coen, me senti como uma viajante que, após longos anos de viagem, havia finalmente chegado em casa.

Enquanto meditava, chorava, um misto de saudade de um tempo que ficou longe e o alívio de ter finalmente chegado. Todos os meus questionamentos cessaram. Todas as religiões procuram levar as pessoas a isso.

Para mim, o caminho foi o zen. Acredito que temos diversidade religiosa porque temos diferentes seres humanos, culturas, personalidades e níveis de compreensão.

Foi fácil abrir mão da família, de afetos?
Não foi nem fácil, nem difícil. Foi simplesmente o próximo passo, tão natural quanto a próxima inspiração após uma expiração. Não havia outro jeito possível de continuar vivendo.

Mesmo com as dificuldades que possam surgir nesse caminho, é esse o ar que quero respirar, o assunto que quero falar, é essa a vida que quero levar, são essas as pessoas que quero ter ao meu lado, é essa a prática que quero fazer.

É essa a paz que quero viver e transmitir às outras pessoas. Praticamente não tenho mais relacionamentos de família. Meus pais já morreram e não tenho irmãos. De certa forma, isso facilitou as coisas. Mas tive que me afastar dos amigos e morar em um país estranho com uma cultura muito diferente e uma língua bastante difícil.

Aprendi muito no Japão, me apaixonei pelo povo e pela cultura. Mas confesso que fingi que não estava com saudades do Brasil. Chorei quando saí do mosteiro e finalmente pude ouvir Tom Jobim.

Qual a tarefa de uma monja?
Servir todos os seres, sem discriminação, procurar aliviar a dor de todos os seres, ensinar a todos que desejam receber esses ensinamentos sobre como encontrar a paz e, dentro do possível, ajudar o próximo.

Procuro viver de acordo com os preceitos budistas e os votos do Bodisatva: seres são inumeráveis, faço voto de salvá-los. Desejos são inexauríveis, faço voto de extingui-los. Portais do darma são ilimitados, faço voto de aprendê- los.

O caminho de Buda é o mais elevado, faço voto de realizá- lo. Só posso servir aos outros corretamente estando bem comigo mesmo. Para construir a paz no mundo, tenho que me tornar paz.

Se eu não mantiver a minha prática, meditando, trabalhando os preceitos, me tornando a própria paz, não vou conseguir ajudar os outros verdadeiramente.

Posso até fazer caridade, mas, se eu não mantiver a minha prática constantemente, corro o risco de me perder na ilusão do ego e acabar tentando impor a minha “verdade”, aquilo que eu, no meu limitado ego, acho que a outra pessoa precisa em lugar de ser capaz de enxergar o outro como ele é, ouvi-lo de verdade e perceber o que ele necessita.

O budismo ensina, entre outras coisas, que o remédio de um pode ser o veneno do outro. Tenho que me esvaziar de mim mesma, de minhas opiniões, conceitos, certezas, condicionamentos e crenças.

Uma vez que me esvazio, o que não é nada fácil, as respostas brotam lá de dentro, a sabedoria aparece por si só. As intuições, as palavras que precisam ser ditas, as ações apropriadas surgem. Mas para chegar nesse vazio, é preciso a prática.

Pico de Raios 2


Atenção plena, disciplina e observância aos preceitos legados por Buda.

O que é rakasu?
É uma espécie de manto de Buda em miniatura, portátil. Parece com um babadouro. Os monges o usam sobre a roupa, em substituição ao manto clássico. Os leigos passam a usar o rakusu depois de uma cerimônia em que fazem o voto de viver sua vida de acordo com os ensinamentos budistas e com os votos do Bodisatva.

De onde vem essa prática?
A tradição de costurar seus próprios mantos vem desde a época de Buda e passou pela Índia, China e Japão. No Brasil ela é recente.

Há poucas informações disponíveis em línguas ocidentais, mas parece que a costura do rakusu, usado principalmente pelos monges, é uma tradição que surgiu no Japão, em meados do século 19.

Um monge chamado Sawaki Kodo Roshi foi muito importante na expansão da tradição da costura do rakusu entre os praticantes leigos no início do século 20. Entre seus discípulos está a monja Okamoto Kobun Roshi, que foi a minha professora de costura budista no mosteiro em Nagóia.

Qualquer pessoa pode participar desse curso?
Em princípio, qualquer pessoa que se interessa pela prática budista pode participar. Mas esta não é uma roupa comum.

É um símbolo dos votos da prática e, portanto, deve-se ter um relacionamento com um monge ou monge-noviço (há vários em Belo Horizonte), estudar os preceitos com alguém qualificado a ministrar esses ensinamentos e, por fim, passar pela cerimônia para receber os preceitos com um mestre zen.

No Japão, há retiros especiais de costura chamados “Fukudenkai”, semelhante à esse que estamos realizando aqui, no Templo Zen Pico de Raios, em Ouro Preto. Essa prática deve ser orientada por um monge, ou uma monja senão vira costura comum.

Pico de Raios 1


Praticantes budistas, em silêncio, aprendem a técnica milenar da costura do rakusu


Qual a duração do retiro e a disposição interna que a pessoa deve ter?
Reservamos quatro dias para essa prática. As pessoas que possuem mais habilidade na costura ajudam os outros menos habilidosos. Os homens também costuram.

Não é uma questão de habilidades técnica. Requer sinceridade de esforço, atenção plena e concentração. Acredita-se que o rakusu absorve a energia com qual é costurado para depois irradiar essa mesma energia.

Portanto, se a costura se faz com bate-papo leviano, fofoca e reclamações, ela gera um resultado. Costurar com carinho, atenção e sinceridade, dará outro resultado. Não importa que os pontos de costura não sejam lindos, como os de uma costureira experiente, mas que sejam feitos com carinho e atenção plena da prática budista.

Um manto para Buda. Qual o sentido dessa construção interna?
O rakusu representa os campos de arroz e os caminhos que passam entre eles. O arroz sustenta a vida. Os caminhos distribuem a água para o arroz crescer.

Os ensinamentos de Buda nos sustentam como o arroz e são passados de mestre para aluno numa linhagem que se iniciou com o Buda histórico há quase 2.600 anos, tal como os caminhos que passem entre os campos de arroz.

Cada pessoa costura o seu manto ou é uma criação coletiva?
Como essa é uma prática nova aqui no Brasil, ainda está centrada em cada pessoa costurando o seu. Futuramente talvez possamos aprofundar para os outros níveis. Como em um templo dos Estados Unidos onde todos se juntaram para tecer um manto budista para sua monja e professora que iria assumir como abadessa.

O manto levou mais de um ano para ficar pronto. A prática já está acontecendo em Ouro Preto e termina no dia 20 próximo.

Para saber mais: Comunidade Zen Budista – Zendo Brasil. Tel: (11) 3062-8964. Sites: http://www.monjacoen.com.br http://www.zendobrasil.org.br
e-mail: zendobrasil@gmail.com
Templo Zen Pico de Raios Ouro Preto (31) 3551-6102

Publicado no jornal “O Tempo” de Belo Horizonte, MG – 14 de fevereiro de 2006 – página C4

5 Comentários »

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  1. Sensei Isshin,

    Agradeço sinceramente o tempo que passou conosco neste feriado de 21/04. Seus olhos castanhos-esverdeados olhando para mim e falando de flexibilidade, suspensão temporária de idéias em favor de outra pessoa,compaixão e a nossa lição pessoal com o feito do rakusu, tiveram o mesmo efeito que minha antiga professora de ciências da sexta série com seu infantil desenho da aranha na folha sulfite, são inesquecíveis. Guardo suas palavras no meu coração.

    Afetuosamente,

    Debora

  2. interessante

  3. Estou cada vez mais interessada na prática budista. Sou praticante e instrutora de yoga, e embora já tenha praticado meditação de forma regular há alguns anos, deixei a prática regular e minha intenção é reiniciá-la da forma que mais me mostrou eficaz, satisfatória e trouxe resultados em minha vida: a meditação zen-budista. Espero recomeçar com um grupo inicialmente e posteriormente, reiniciar uma prática diária. Adoro a idéia de estar tão perto de um mosteiro (ou templo) zen. (Moro em Belo Horizonte). Adorei esta matéria (tb sou jornalista) e tantas outras que li entre as minhas recentes pesquisas de textos sobre budismo e especialmente, sobre zen budismo. Abraços fraternais a todos. Ana.

  4. Isshin Sensei
    Não sei se se lembra de mim, de minha esposa Silvana e meu filho Yuri (seu admirador dos “mangueirinhos”), amigos dos Xan=vantes. Há algum tempo encontrei seu site e enviei um e-mail, mas não obtive resposta. Sei que seu tempo e muito curto, apesar de tempo não ser mensurável. Mas, gostaria de poder retomar nossas conversas.
    Por favor, me escreva.
    Pedro

  5. Adorei o artigo!


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