Reportagem na Revista Pragmatha Gestão & Negócios

abril 1, 2013 às 6:49 pm | Publicado em Entrevista, Meditação em Porto Alegre, Revistas - Artigos e Entrevistas, Zen Budismo em Porto Alegre | Deixe um comentário

Negócios, dinheiro e competição no contexto da espiritualidade

Sucesso material é compatível com espiritualidade? Pode-se falar em melhoria no padrão de competitividade, a partir de uma visão mais espiritual do mundo do trabalho? Segundo a a monja zen budista americana e naturalizada brasileira Isshin Havens Sensei, essas questões são complexas, mas ao mesmo tempo simples. Em Porto Alegre, Isshin atua como orientadora espiritual da Comunidade Zendo Sul, é autora do livro “A Vida Compassiva Compaixão” e também desenvolve projetos diferenciados para comunidades, empresas e profissionais.

Segundo a monja, há competitividade saudável e nãosaudável, a primeira mais praticada por aqueles que só pensam em si próprios, podendo-se valer de métodos inescrupulosos, e a segunda praticada por aqueles que cultivam a inteligência espiritual, desenvolvendo um centramento interno, espaço de calma que permite enxergar as situações com uma visão cada vez mais clara, ouvindo a voz da intuição e priorizando decisões éticas. Na competitividade saudável, garante Isshin, o foco maior é com o próprio trabalho e não na competição. Isto implica em cultivar um relacionamento ganha-ganha com colegas, empregados, empregadores, clientes, fornecedores. “Por exemplo, a sociedade, como um todo, está cada vez mais consciente da importância do pensamento ecológico e dos direitos dos outros seres, humanos e animais. Por mais que temos as nossas diferenças, somos todos parte de um algo maior. Para citar um clichê – estamos todos no mesmo barco, portanto, a inteligência espiritual nos ajudará a remar juntos”.

Sobre fontes de inspiração espiritual para uma melhor prática, a monja lembra que no pensamento protestante cristão existe a ética do trabalho, o trabalho como meio de salvação. No Zen Budismo, existe a prática do “samu” (geralmente traduzido como trabalho ou ‘atividade diária). “Consideramos todas estas atividades como sendo igualmente sagradas.”, explica. Outro exemplo é a experiência monástica católica. “Vemos os monges budistas ou católicos fazendo o seu trabalho com um espírito leve e com alegria, flexibilidade e prontidão de simplesmente fazer o que precisa ser feito, sem ficar presos em falso orgulho e medo ou outros sentimentos negativos. Para a pessoa leiga, verdadeiramente espiritualizada, seria a mesma coisa.

Por estarem centradas na sua espiritualidade, tais pessoas tendem a ter uma percepção mais clara das situações e uma intuição mais forte, que passa a trabalhar de uma forma integrada com o seu lado racional e as ajuda a reconhecer aspectos sutis dos acontecimentos e a enxergar o quadro maior.

Segundo a monja, os ensinamentos sobre a importância de servir e de liderar servindo são idênticos e comuns nas mais diversas religiões. No Japão e outros países asiáticos, diz Isshin, é bastante comum para as pessoas leigas, incluindo muitos empreendedores e profissionais, passar algum período de tempo num mosteiro budista, para fortalecer o caráter e treinar o servir. Monja Isshin atenta para o fato de que se criou uma imagem estereotipada da pessoa supostamente espiritualizada como “bicho grilo” e alienada, que não combinaria com o sucesso no mundo material, dinheiro ou negócios. Porém, é falsa em se tratando de pessoas de fato espiritualizadas. “Os mestres religiosos que conheço têm sido pessoas bem presentes no mundo real e incentivam que os leigos espiritualizados vivam com honestidade, ética, dignidade e generosidade, desfrutando do dinheiro, do sucesso e dos benefícios resultantes.”

Reportagem publicada na Revista Pragmatha / Gestão & Negócios – No. 3 – Março 2012- página 07 – Gestão pessoal

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Entrevista no Blog “Bossa Zen” (Parte 1)

março 22, 2013 às 4:38 pm | Publicado em Blogroll, Entrevista, Meditação em Porto Alegre, Prática Zen Budista, Revistas - Artigos e Entrevistas, Uncategorized, Zen Budismo em Porto Alegre | Deixe um comentário

Reproduzo aqui uma entrevista minha que foi publicada no site Bossa Zen, um site muito bom e bastante sério sobre o Budismo, mantido pela praticante do Zen Coreano Jeane Dal Bo. Confesso que me senti bastante honrada com a apresentação que ela escreveu sobre mim:

Sensei Isshin depois de longos anos de treinamento no Brasil, Japão e Estados Unidos, radicou-se em Porto Alegre. Não importa o título que receba, uma vez que nos habituamos a chamá-la de “monja”, assim será por toda sua vida, exceto para seus alunos que já a chamavam de sensei e agora podem seguir chamando-a. Dizem que ser monge de verdade é mais nobre que obter qualquer título. É certamente esse o esforço que Monja Isshin pratica em sua vida e na comunidade que lidera.

Seu dia-a-dia  é preenchido por atividades na Sanga Águas da Compaixão e outras sangas em outras cidades do RS (Pelotas e Caxias do Sul), além de cursos e palestras tornando seu tempo bastante limitado, portanto, essa entrevista foi dividida em duas partes.

Agradeço a sua disposição em colaborar com esse projeto e espero que suas palavras possam iluminar o caminho de quem passar por aqui.

BZ: A sra. já fez parte de orquestras enquanto instrumentista. Em uma orquestra cada um deve fazer a sua parte em benefício do todo. Na comunidade (sangha) também é assim? Reger um Sangha é como reger uma orquestra?

Sensei: (Risos) Acho que é bem mais fácil reger uma orquestra. Numa orquestra o músico não tem dificuldade em perceber qual é o seu papel dentro do todo, enquanto que, especialmente na nossa cultura ocidental individualista e competitiva, não é nada fácil um praticante chegar a se perceber como fazendo parte de um todo maior e tendo o seu lugar, o seu papel dentro deste todo.

Acredito que a minha experiência com a música (banda marchante durante o colégio e a carreira  em orquestra sinfônica) me facilitou a percepção do sentido de “grupo” no meu treinamento no Japão – e isto foi um dos grandes aprendizados que recebi lá. Tive a oportunidade (rara para os estrangeiros) de ser tratada como se fosse uma japonesa, sujeita às mesmas exigências que as minhas colegas japonesas, pois muitos mosteiros, sabendo que a maioria dos estrangeiros, que geralmente não falam a língua e estão lá por três meses, o tempo do visto de turista, não se interessam por vários aspectos da prática (como o cerimonial, por exemplo), então eles deixam de incluir estrangeiros nestes tipos de atividades. Assim sendo, se, de um lado, tive que enfrentar grandes dificuldades, devido às barreiras culturais e linguísticas, pelo outro lado, a oportunidade de participar, sem qualquer exceção,de todos os aspectos do treinamento monástico japonês foi de um valor inestimável. Assim, pude me mergulhar na experiência de “ter o meu lugar dentro do grupo”. Foi uma vivência incrível, pelo qual sou extremamente grata.

Mas, transmitir isto aos praticantes leigos ocidentais não vem sendo uma tarefa fácil, pois o resultado da cultura ocidental de individualismo – um senso sutil de isolamento e solidão existencial – é muito enraizado na mente inconsciente coletiva. Devido a este condicionamento, muitas “sangas” ocidentais não passam de pontos de encontro de indivíduos – quase consumidores – que se encontram para o zazen, mas onde não chega a existir a “entidade” de Sanga. Como a nossa Sanga ainda é relativamente nova, temos uma longa caminhada pela frente para chegar a criar uma verdadeira Sanga, onde cada membro possa vivenciar profundamente o “pertencer ao grupo” e “ter o seu lugar” e passar a realmente “tocar a sua parte” na criação da harmonia de uma Sanga. Mesmo assim, reconheço e agradeço a boa vontade e empenho sincero dos membros da nossa Sanga – passo por passo,vamos caminhando… .

BZ: Em geral os praticantes budistas estão na faixa etária de 40-70 anos, já tem supostamente uma estabilidade na vida. Isso facilita mais a adesão a prática budista?

Sensei: Sim e não. Facilita sim, porque a pessoa nesta faixa etária já sabe melhor o que quer e o que pensa. E dificulta, porque frequentemente, estas pessoas, chegam à prática cheias de ideias preconcebidas sobre como deve ser a prática e como o(a) professor(a) de darma deve se comportar. Já leram livros, já criaram “mitos” dentro de suas cabeças e frequentemente não querem aceitar qualquer coisa que contraria estes “mitos”. Muitas vezes, acreditam mais nas suas interpretações dos livros que lerem que na experiência e treinamento do(a) professor(a).

BZ: Seus grupos são predominantemente de jovens. Acha que tem mais afinidade com eles?

Sensei: Não sei, pois nunca pensei nisto – não havia percebido este fato… . Como mencionei no item anterior, as pessoas com mais idade tendem a ter suas próprias ideias preconcebidas, não querendo abrir mão delas… . Mesmo assim, apesar de nossa Sanga ser ainda bastante nova, já houve o tempo suficiente para que algumas pessoas que não se adaptaram a nossa sanga e a minha liderança saírem.

Possivelmente, o fato de eu ser uma pessoa “high tech” ajude a aproximação dos mais jovens.

De qualquer forma, nem penso em idade quando estou com as pessoas ou quando penso em mim mesma. Procuro receber cada pessoa simplesmente como ela é nesse momento.

BZ: Recentemente a sra. recebeu o manto de açafrão, tornando-se sensei, o que essa nova etapa significa para a sra. e a comunidade e quais são suas atribuições como sensei?

Sensei: Sou muito grata ao Onoda Roshi por ter me honrado com a sua linhagem e tenho aprendido muito com ele. Também sou muito agradecida aos outros professores principais que tive durante a minha caminhada – tenho dívidas de gratidão especialmente com a Monja Coen, professora de ordenação; Shundo Aoyama Roshi, professora de treinamento e abadessa do mosteiro no Japão e Saikawa Roshi, o nosso superintendente para a América do Sul. Naturalmente, todos nós ficamos contentes com a finalização oficial do treinamento formal (pois, na verdade, o “treinamento” – a prática – nunca termina).

Com a troca do manto preto do “unsui” (monge-em-treinamento) para um dos mantos coloridos do monge plenamente formado – “rikishô” (manto marrom, antes das cerimônias de zuise) ou “oshô” e “sensei” (manto açafrão ou outras cores, depois destas cerimônias), passamos a ter a “autoridade” conferida pelo reconhecimento oficial que recebemos do professor e da “instituição” da escola Soto Zen propriamente dita, que estão declarando que completamos todos os pré-requisitos de treinamento e somos autorizados como sacerdotes e professores do Darma, habilitados a ordenar novos monges e oficiar Transmissão de Preceitos.

Mas a cor do manto não muda a pessoa e não acrescente nenhuma sabedoria especial. É simplesmente um novo pedaço de pano, mais um passo na nossa caminhada. Na prática, a troca de manto e oficialização do título “sensei” não mudou muita coisa para mim ou para o nosso grupo. Já vinha orientando um grupo de prática fazia cinco anos, quando recebi transmissão esse grupo que já me aceitava como “sensei” continuou me aceitando do mesmo jeito e quem não me aceitava, continuou não me aceitando (risos). Panos coloridos e títulos não fazem muita diferença e não precisamos nos preocupar com eles. O que conta é o dia-a-dia, o relacionamento que vai se construindo com os alunos.

BZ: É comum vermos muitos noviços e noviças sendo chamados de monges e monjas e tão logo recebam seus votos já passam a se intitular como tal. Esse querer ser antes de ser é cultural ou acontece também no Japão?

Sensei: Tecnicamente não está errado chamar um noviço ou monge-aprendize (duas graduações para “unsui” ou “monges-em-treinamento” de  “monge” ou “monja”. Mas, pessoalmente, após, testemunhar determinadas situações nos Estados Unidos, quando lá fiz meu treinamento avançado, cheguei a conclusão que isso cria alguns problemas potencialmente graves que acredito podem surgir aqui também.

O que acontece é que num país cristão-especialmente num país católico-chamar alguém de “monge” ou “monja” pode induzir as pessoas à interpretações errôneas, pois o público em geral tende a entender o termo “monge” como alguém já formado, com seu treinamento completo, enquanto que no Budismo, a ordenação monástica é somente o primeiro passo de um longo caminho de treinamento.

Tenho um aluno que recebeu ordenação monástica no ano passado tornando-se “unsui”, na graduação de “jôza” ou noviço. Recomendei que ele evitasse de se chamar de monge enquanto estiver na graduação de “jôza”, o incentivando a se assumir perante os outros como noviço enquanto esse fase durar. Vejo que isto tem dado bons resultados no desenvolvimento dele.

No Japão, um monge-em-treinamento não teria permissão de estar liderando grupos ou tentando ensinar a prática.

Com todos sendo chamados de “monge” ou “monja”, a cor do manto acaba não fazendo diferença nenhuma, e o que aparentemente “chama” as pessoas novas para este ou aquele grupo fica mais na questão de visibilidade, fama e carisma do responsável do grupo e menos nas qualificações e graduações.

No Brasil e América do Sul temos, ainda, poucos professores realmente qualificados e, devido ao tamanho do país, estes frequentemente se vêem obrigados a tentar ensinar “à distância” – o que dificulta terrivelmente a supervisão e “moldagem” destes alunos ou noviços, que, por sua vez, estão liderando grupos de prática e, às vezes, se colocando como “orientadores espirituais”. É uma situação complicada, sem soluções fáceis – todos fazendo o melhor que podem, dentro de suas causas e condições, com sinceridade e boa vontade… .

BZ: A sra. sempre quis ser monja? Qual o papel do monge na comunidade zen?

Sensei: Fui criada numa família protestante fundamentalista. Não me adaptei àquela interpretação religiosa e a abandonei aos 16 anos. Quando, durante o colégio, estava procurando escolher a minha futura profissão, me lembro de ter pensado que, se tivesse sido católica, me tornaria freira. Mas, como isto não era possível, acabei me tornando musicista. Não me lembrava mais deste detalhe até chegar no Zen, quando pedi ordenação monástica, mas o fato é que sempre nutria o desejo de “trabalhar com o ser humano”. Acabei largando a profissão de musicista justamente porque não me dava esta possibilidade da forma que queria… . Cheguei, inclusive, a refazer estudos de colégio, pensando em prestar vestibular para estudar  medicina-psiquiatria ou a psicologia – até que o Plano Collor atrapalhou aqueles planos. Quando cheguei no Zen, tive a sensação de ter chegado “em casa” – que era isto que eu sempre havia procurado. E realmente, me sinto realizada e feliz com o desfecho das coisas.

Não é fácil dizer qual o papel do monge na sua comunidade. Ele deve “servir” à Sanga, apontando a Lua e deve cuidar de sua própria prática. Não deve tomar posturas “autoritárias” ou cometer abusos da ética, mas também precisa ter a coragem para fazer o que for necessário para o bem do aluno e da comunidade. Mais ainda, acho que o monge deve “ser uma pessoa real” – sem jogos, máscaras ou papeis de “bonzinho”, etc. Acredito que uma das coisas mais importantes que tenho para compartilhar com os meus alunos é justamente a auto-aceitação e a possibilidade de simplesmente ser “quem é” ou “quem está em cada momento”.

Na verdade, recebi muito pouco treinamento de “liderança” e venho aprendendo a fazer a aplicação prática do meu treinamento para cuidar da nossa Sanga na base de tentativa e erro… . Gosto muito da palavra “sensei” porque ela não coloca a gente num pedestal como um ser especial – simplesmente diz que “vivemos antes” (temos alguma experiência e treinamento). Passo-por-passo, vamos caminhando todos juntos, cultivando a nossa prática.”

O Alimento na Religiosidade Zen Budista

novembro 30, 2012 às 9:23 pm | Publicado em Cultura Japonesa, Meditação em Porto Alegre, Revistas - Artigos e Entrevistas, Zen Budismo em Porto Alegre | Deixe um comentário

Publicado originalmente na revista Diálogo – Revista de Ensino Religioso, nº 63, de Agosto/Setembro 2011 – pp. 20 – 25.

Nas religiões orientais há vários rituais dos quais os alimentos fazem parte, assim como em quase todas as religiões. As famílias japonesas da tradição zen-budista costumam ter em suas casas um butsudan – altar –, contendo uma imagem de Buda, tabletes memoriais, ou ihai, com os nomes dos antepassados e outros familiares falecidos, vela, incensário e vaso para flores. Há também uma taça para a oferta de água. Diariamente, alguém da família troca a água, acende a vela, oferece incenso e faz a leitura de um sutra – texto sagrado budista – em frente do altar. Pode ser que se ofereça também um pouquinho de arroz e, frequentemente se oferece alguma fruta – como maça, pêra ou laranja, ou algum doce.

Uma vez ao mês, as famílias recebem um monge, que faz a leitura de sutras para os antepassados. Nessas ocasiões, outros membros da família talvez participem desta pequena cerimônia. Neste dia, a oferta de uma refeição é feita, usando um conjunto de pratinhos especiais.

Nos mosteiros, os monges costumam usar um conjunto de tigelas – oryoki – para comer e as refeições são acompanhadas da recitação de versos, relembrando o esforço de trabalhadores no plantio, colheita e transporte dos alimentos.

As duas refeições principais nos mosteiros são o café da manhã e o almoço. Quando a comida está pronta, o cozinheiro chefe – tenzo – prepara uma oferta desta comida em tigelas de tamanho reduzido e a coloca numa bandeja alta chamado sambô. Ainda na cozinha, o tenzo coloca a oferta sobre a mesa, oferece incenso e faz nove prostrações. Então leva o sambô com a oferta até a sala de meditação, onde ela será colocada no altar, como uma oferta à memória de Buda.

No momento do almoço, os monges coloquem um pouquinho de arroz como uma oferta especial – sabá – para alimentar os gaki – espíritos famintos. Todo dia, no serviço vespertino, recitam, de uma forma simples e sem oferendas, o Sutra do Portal da Doce Néctar – Kanromon , simbolicamente oferecendo alimento novamente aos espíritos famintos.

Este sutra é composto de três partes:

1ª) Saudação aos Budas do Passado, ao Darma e à Sanga, ao Shakyamuni Buda, à Kannon Bodisatva e ao Venerável Ananda que são convidados para ocuparem o âmbito purificado para presenciar e dar aprovação à cerimônia.

2ª) Oferta, aos espíritos famintos, de comida e bebida, para que se tornam satisfeitos e despertem à prática e aos ensinamentos de Buda.

3ª) Recitação da Palavra Verdadeira – Shingon – e boas vindas aos Cinco TatagatasGo Nyorai – para conduzir todos os espíritos do mundo de sofrimento à Terra Pura.

Mas quem são estes “espíritos famintos”?

O conceito de “espíritos famintos” já fazia parte da cultura da Índia antiga, num período anterior ao Budismo, e pode ser encontrado em várias religiões. No Budismo, a tradição de “alimentar os espíritos famintos” começou na Índia e passou para os outros países, como China, Tibete, Japão, Tailândia, etc. na expansão dos ensinamentos budistas.

De acordo com o Ullambama Sutra, um dos monges-discípulos de Buda, o Maudgalyāyana, tinha o poder de clarividência. Um dia, viu a sua mãe, que havia sido uma pessoa gananciosa e ciumenta durante sua vida, sofrendo num dos infernos. Havia se tornado um espírito faminto, um ser com uma barriga enorme, braços e pernas magros e um pescoço finíssimo como um palito. Devido ao pescoço tão fino, não conseguia engolir comida suficiente para satisfazer a sua fome. Sofria muito, sentindo-se “faminto” o tempo todo.

O Buda instruiu este monge a fazer uma oferta de alimentos à comunidade monástica no dia depois do final do retiro de verão tradicional dos monges. Assim que foi feito a oferta, o Maudgalyāyana viu, através de clarividência, que a sua mãe já estava livre de seu sofrimento e renascendo no mundo dos humanos. De tão alegre, ele dançou, o que deu origem de um tradicional modo japonês de dançar chamado Bon Odori.

Na China, devido à influência do confucianismo e taoismo, a oferta passou a ser direcionada também aos antepassados. No taoísmo acreditava-se que pessoas que sofrerem mortes violentas tornaram-se espíritos famintos. Deixar de realizar os serviços em memória dos antepassados com ofertas de alimentos levava-os a virar espíritos famintos que poderiam causar dificuldades para os vivos.

Isso, durante o sétimo mês lunar, período durante o qual se acredita que os portões dos infernos se abrem e os espíritos vêm à terra em busca de comida e entretenimento. Os chineses realizam, até hoje, o Festival dos Espíritos Famintos, quando oferecem alimentos e diversões, como música e danças aos antepassados, sendo que nas apresentações, as primeiras fileiras de assentos são reservadas para os espíritos famintos e ficam vazias.

Desde 657, os budistas japoneses observam o O-bon, a versão japonês deste festival chinês. Atualmente, nos dias 13 a 15 do mês de julho ou de agosto, conforme a região no Japão, as famílias se reúnem para esta celebração. É um feriado nacional, quando todos procuram viajar até o local de seus ancestrais, para visitar o túmulo da família, participar da cerimônia religiosa Sejiki-e e alimentar os espíritos.

No dia 13, pequenos fogos são acesos, para servir de guias para os antepassados voltaram à casa da família para uma visita durante três dias.

Os monges budistas fazem a visita habitual em frente do altar da família, que está montado de uma forma especial com ofertas especiais de alimentos para este período festivo.

Dança-se o Bon O-dori, que lembra a dança do monge Maudgalyāyana , a fim de dizer  aos ancestrais que não se preocupem com seus descendentes, pois estão bem.

Para a Cerimônia Religiosa de Alimentar os Espíritos, o templo é decorado com faixas coloridas e um grande altar – Obon-dana ou Tama-dana – é montado à entrada do templo para facilitar a chegada de espíritos dos infernos e que podem sentir medo de chegar perto do altar principal onde tem a imagem de Buda, um ponto de muita luz. Uma grande variedade de alimentos é colocada sobre este altar: verduras, frutas e produtos alimentícios secos, além de três tigelas especiais: uma com arroz cozido, outra com água limpa e a terceira com uma mistura de arroz cru, lavado e misturado com pequenos pedaços de verduras picadas – mizunoko. Ramos de cedro verde ou de bambu são amarrados em pé nos quatro cantos deste altar.

No centro do altar, é colocado um tablete memorial especial com as palavras San Gai no Ban Rei, isto é, Para Todos os Espíritos nos Três Mundos. Este ritual é dedicado aos espíritos que depois da morte não têm quem cuide de suas sepulturas , pois não mantem nenhum relacionamento com qualquer pessoa viva.

Na cerimônia, é recitado o sutra Kanromon, durante o qual o oficiante faz um ritual de chamar os espíritos famintos e preparar um alimento especial que é dado a eles.

As oferendas são expressões de gratidão aos antepassados, pois além da função de “alimentar os espíritos famintos”, esta é uma cerimônia de lembrança dos antepassados. Assim, os tabletes memoriais dos ancestrais das famílias que estão participando da cerimônia também são colocados neste altar e os seus nomes são lidos durante a cerimônia.

No último dia do O-bon, lanternas de papel – chôchin – são lançadas nos rios para iluminar o caminho de retorno para os ancestrais.

Uma cerimônia semelhante é realizada nos equinócios, também com oferendas de vários tipos de alimentos.

Talvez o aspecto mais importante destas cerimônias esteja no aprender a alimentar o “espírito faminto” que há dentro de nos. Todos têm um lado ganancioso, insaciável, e muitos não abrem o coração para receber ajuda. Ficamos insatisfeitos, sempre querendo mais – um novo celular, um novo jogo, uma nova roupa, um novo par de tênis, mais dinheiro… .

Ao realizar as cerimônias de alimentar os espíritos famintos, na verdade, se está cuidando de si mesmo, para que possa ficar satisfeito.

Ao colocar oferendas de alimentos no altar, se está alimentando a si mesmo, a fim de descobrir o contentamento e, assim, realizar o Caminho de Buda e encontrar a paz e tranquilidade.

Entrevista: Business & Opportunities

setembro 20, 2012 às 10:43 am | Publicado em Blogroll, Entrevista, Meditação em Porto Alegre, Prática Zen Budista, Revistas - Artigos e Entrevistas, Zen Budismo em Porto Alegre | Deixe um comentário
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Negócios, dinheiro e competição no contexto da espiritualidade

Sucesso material é compatível com espiritualidade? Pode-se falar em melhoria no padrão de competitividade, a partir de uma visual mais espiritual do mundo do trabalho? Nesta entrevista, a monja zen budista americana e naturalizada brasileira Isshin Havens responde a estas e outras questões.

Em Porto Alegre, Isshin atua como orientadora espiritual das sangas Águas da Compaixão, Aikikai e Energia Harmoniosa. Seu treinamento como monja da tradição japonesa de Soto Zen Budismo iniciou em São Paulo, onde recebeu ordenação de sua professora, Monja Coen, tendo continuidade em mosteiros do Japão e Estados Unidos. Autora do livro “A Vida Compassiva: Compaixão” e do blog Águas da Compaixão, também desenvolve projetos diferenciados para comunidades, empresas e profissionais.

Business & Opportunities: Muito já se falou em inteligência emocional, como fator de competitividade no mercado de trabalho, e nos últimos anos tem se falado também de inteligência espiritual. Não parece paradoxal, falar de inteligência espiritual para aumentar a competitividade?
Monja Isshin: Há competitividade saudável e não-saudável. Quem pratica a competição não-saudável, geralmente, pensa somente no seu próprio benefício egoísta (ou o benefício da empresa com a qual se identifica) com uma mentalidade de “danem-se os outros!”. Frequentemente, apela a métodos inescrupulosos na ânsia de conquistar lucros sempre maiores e monopólio de mercado. Mas estamos aprendendo cada dia mais que este tipo de atitude é inviável no médio prazo e também no longo prazo. Não se sustenta. Cultivando a “inteligência espiritual”, o profissional desenvolve um “centramento” interno, um espaço de calma que permite enxergar as situações com uma visão cada vez mais clara, ouvindo a voz da intuição. Na medida em que se aprofunda numa prática espiritual, pode vivenciar, ao nível experiencial subjetiva, a unidade de todas as coisas. Nesta hora, as decisões eticamente corretas se tornam muito mais fáceis, bem como a percepção de soluções criativas para as dificuldades que enfrentamos.

Business & Opportunities: Ocorre, então, uma mudança de perspectiva…
Monja Isshin: Exatamente. Na “competitividade saudável”, o empreendedor deixa de se preocupar tanto com “a competição” e o desejo de esmagá-la e se foca mais precisamente em fazer o seu próprio trabalho da melhor forma possível. Isto implica em cultivar um relacionamento “ganha-ganha” com os seus empregados, empregadores e clientes, e entender que estes estão cada dia mais informados e sensibilizados neste mundo que virou praticamente um vilarejo, graças às facilidades de comunicação e locomoção. Por exemplo, a sociedade, como um todo, está cada vez mais consciente da importância do pensamento ecológico e dos direitos dos outros seres, humanos e animais. Por mais que temos as nossas diferenças, somos todos parte de um algo maior. Para citar um clichê – “estamos todos no mesmo barco”, portanto, a “inteligência espiritual” nos ajudará a remar juntos.

Business & Opportunities: Quais seriam as características de um trabalho, de um labor, com um toque espiritual?
Monja Isshin: No pensamento protestante cristão encontramos a “ética do trabalho”, o “trabalho como meio de salvação”. No Zen Budismo, temos a prática do “samu” (geralmente traduzido como ‘trabalho’ ou ‘atividade diária’) como uma parte bastante importante de nossa prática espiritual, onde devemos nos entregar 100% na atividade que temos a nossa frente com o mesmo espírito com o qual sentamos em meditação ou cantamos as sutras (escrituras). Consideramos todas estas atividades como sendo igualmente sagradas. A experiência monástica católica é bastante semelhante. Consequentemente, vemos os monges (budistas ou católicos) fazendo o seu trabalho com um espírito leve e com alegria, flexibilidade e prontidão de simplesmente fazer o que precisa ser feito, sem ficar presos em falso orgulho e medo ou outros sentimentos negativos. Para a pessoa leiga, verdadeiramente espiritualizada, seria a mesma coisa. Finalmente, por estarem “centrados” na sua espiritualidade, tais pessoas tendem a ter uma percepção mais clara das situações e uma intuição mais forte, que passa a trabalhar de uma forma integrada com o seu lado “racional” e as ajuda a reconhecer aspectos sutis dos acontecimentos e a enxergar o quadro maior.

Business & Opportunities: O livro ‘O monge e o executivo‘ é bestseller e inspira muitas pessoas em seus trabalhos. Qual sua avaliação?
Monja Isshin: Gostei muitíssimo. No fundo, há muito pouca diferença entre a experiência de um monge cristão e um monge budista. De fato, são realizados muitos intercâmbios e compartilhamentos entre os dois grupos. Consequentemente, os ensinamentos sobre a importância de “servir” e de “liderar servindo” são idênticos. No Japão e outros países asiáticos, é bastante comum para as pessoas leigas, incluindo muitos empreendedores e outros profissionais, passar algum período de tempo num mosteiro budista, para “fortalecer o caráter” e treinar o “servir”. Assim, me identifiquei bastante totalmente com o livro e certamente o recomendo.

Business & Opportunities: Muitas pessoas veem a espiritualidade como contraposição a negócios, dinheiro, sucesso no mundo material. Como a senhora vê essa questão?
Monja Isshin: Criou-se uma imagem estereotipada da pessoa supostamente “espiritualizada” como sendo uma pessoa “bicho grilo” e “alienada”. Nesta imagem, seria lógico concluir que tal espiritualidade não combinaria com o sucesso no mundo material, dinheiro ou negócios. Mas tal imagem não representa o quadro da pessoa verdadeiramente espiritualizada, como eu a conheço. Os mestres religiosos, sejam católicos, sejam budistas, que tenho conhecido, têm sido pessoas bem presentes, ativas e atuantes no mundo real. Mais ainda, eles incentivam que os leigos espiritualizados vivam plenamente, com honestidade, ética, dignidade e generosidade, desfrutando do dinheiro, do sucesso e dos benefícios resultantes.

Publicada originalmente na Revista Business & Opportunities, da Câmera de Comércio  Italiana Rio Grande do Sul, Novembro 2010.

Revista Triratna, Ano II, No. 2

junho 11, 2011 às 12:20 am | Publicado em Blogroll, Prática Zen Budista, Professor de Darma Zen Budista, Revistas - Artigos e Entrevistas, Zen Budismo em Porto Alegre | Deixe um comentário

Reproduzindo o Editorial da Edição No. 2 da Revista Triratna, do CBB-Colegiado Buddhista Brasileira, do qual a Monja Isshin é membro-colaboradora:

O Buddhismo no Brasil, apesar de quantitativamente pequeno em número de membros efetivos, tornou-se nas últimas décadas uma prática altamente simpática e agradável para muitos brasileiros. Realmente, é impressionante o grande número de brasileiros não-buddhistas (os chamados “simpatizantes”) que respondem com entusiasmo aos eventos relacionados a grandes nomes da liderança buddhista, organizados em território nacional com freqüência cada vez maior. Mas o fato é que este interesse e entusiasmo nem sempre correspondem a uma correta compreensão dos fundamentos que traduzem o Dharma de Shakyamuni Buddha em seu correto sentido e coerência. A amplitude dos conceitos humanistas do Buddhismo torna-o altamente adaptável a culturas e linguagens, mas esta saudável flexibilidade não significa que a prática buddhista seja destituída de tradição, originalidade e profunda observação dos seus preceitos corretos.

Assim, temos um interessante dilema para as escolas tradicionais buddhistas já estabelecidas no Brasil: como é possível criar meios hábeis para que os corretos ensinamentos da prática buddhista sejam apresentados aos brasileiros, sem que tais ensinos se percam em erros graves ou misticismos inadequados? Mais além, temos um fator ainda mais delicado e impor tante: quem são e como se apresentam os prováveis líderes e orientadores de Dharma brasileiros?

Fala-se freqüentemente em um “buddhismo brasileiro”, um tipo de buddhismo que existe em detrimento da idéia de um “buddhismo no Brasil”.  Com isso, algumas pessoas procuram lançar a concepção de um novo tipo de buddhismo, aquele que possuiria uma aparência e um contexto nacional, e que encarne o espírito característico da cultura brasileira, e não apenas um buddhismo estabelecido no Brasil mas que não se apresente “nativo”. Este é outro tema delicado e difícil, que precisa ser analisado atentamente pelas escolas buddhistas nacionais, pois é inevitável entender a prática e o entendimento do Dharma como um processo de adaptação consciente dos seus conceitos em nosso cotidiano, e nas realidades específicas de nossa sociedade.

Ao compreender que o debate amplo e diversificado sobre a atuação do buddhismo nacional possui um peso enorme para a correta organização de escolas e práticas buddhistas brasileiras, a REVISTA TRIRATNA sustenta em sua segunda edição a continuidade do tema, iniciado em seu primeiro número (“O Brasil Buddhista: Novas Perspectivas”). Nesta edição, apresentamos artigos que procuram introduzir o leitor ao conhecimento básico de algumas escolas buddhistas relevantes, sob a ótica de seus membros monásticos. Destacamos a introdução aos aspectos essenciais da linhagem Drukpa do Buddhismo Tibetano, feita pelo monge Ngawang Tenphel; temos também a interessante visão do prof. Shaku Shoshin (Joaquim Monteiro) sobre as bases de estabelecimento do Buddhismo Shin (Terra Pura) no Brasil; mais adiante, poderemos analisar os simpáticos comentários da mestra Zen Heila Poep Sa Nim (do Zen Coreano) sobre sua impressão do “espírito brasileiro” em sua visita a diversos espaços de prática em nosso país. Finalmente, temos as explicações simples e sucintas da monja Isshin sobre a cerimônia de transmissão do Dharma, segundo a tradição Soto do Zen japonês. Em destaque final, chamamos a atenção de todos para a abordagem muito interessante do professor Flávio Marcondes sobre o papel social e ético do buddhismo no cenário brasileiro e internacional, as profundas reflexões do monge Meihô Genshô sobre a natureza maravilhosamente vazia das ações do grande patriarca zen Bodhidharma, e dos comentários importantes sobre os fundamentos do Dharma apresentados pelo professor de dharma Ricardo Sasaki.

Concluindo esta edição, temos o texto de autoria do mestre Ajahn Sucitto, um belo exercício de questionamentos sobre a essência do equilíbrio da mente diante dos fenômenos existenciais, sob o prisma da prática contemplativa.

Ler a Revista Virtual Triratna – Publicação Oficial do Colegiado Buddhista Brasileiro – REGISTRO: ISSN 2176-7882 – ANO II – No. 2 – 2011

Em Busca do Espiritual – Entrevista do Jornal Aquarius

fevereiro 27, 2009 às 11:12 am | Publicado em Blogroll, Entrevista, Meditação em Porto Alegre, Prática Zen Budista, Preceitos Budistas, Professor de Darma Zen Budista, Revistas - Artigos e Entrevistas, Zen Budismo em Porto Alegre | 2 Comentários

Entrevista da Monja Isshin publicada parcialmente na edição impressa de fevereiro, 2009 e na integra no blog do Jornal Aquarius, de Porto Alegre:

A monja Ishin Havens nasceu e foi criada em Washington, nos Estados Unidos, onde tornou-se musicista profissional (trompista). Chegou a tocar com artistas como Tom Jobim e Burt Bacharach. Enquanto morava na Europa, em 1971, foi convidada a ingressar numa orquestra sinfônica brasileira. Gostou do Brasil e acabou fazendo do país o seu lar, naturalizando-se em 1984.
Sempre foi uma “buscadora espiritual”. Leu o primeiro livro sobre o budismo em 1969, e se apaixonou pelos conceitos dessa filosofia oriental. Foi somente em 1996 que encontrou a Monja Coen, no Templo Busshinji, de São Paulo. Ali iniciou a prática formal do Zen. Não demorou muito tempo e percebeu que essa prática e a vida de templo budista era tudo que havia procurado na vida. Foi então que pediu e recebeu a ordenação monástica, se tornando monja-noviça, em 1999. No ano seguinte, foi para o Japão realizar treinamento monástico de quatro anos no Mosteiro Feminino de Nagoya. Depois passou um ano em treinamento avançado nos Estados Unidos e um ano como assistente da Monja Coen, em São Paulo, até receber autorização de liderar grupo e ensinar, em 2006.
Atualmente é orientadora espiritual da Sanga Soto Zen Budista Águas da Compaixão, onde desenvolve várias atividades e da Sanga Aikikai, da Associação RS Aikikai, em PortoAlegre, além de palestrante da Universidade Falada.
Qual a diferença básica do Zen Budismo para os outros tipos de budismo?
Todas as escolas Budistas transmitem os mesmos ensinamentos básicos. As diferenças surgem principalmente nas adaptações a cada país e cultura (roupa, por exemplo), na escolha dos textos que serão mais estudados, nos detalhes da interpretação “filosófica” e, principalmente, no estilo da prática. Enquanto que todas as escolas valorizam a meditação, o Zen coloca o Zazen (a meditação Zen) como o eixo central da prática. Ainda mais, o método do treinamento do zen baseia-se nas atividades do dia-a-dia, que podem ser consideradas a meditação vipasana do zen (meditação de plena atenção). No visão do Mestre Dogen, fundador da escola Soto Zen japonês, a prática correta é a iluminação. Por isso, é dada extrema importância à “prática correta” – a “forma” de se portar, os detalhes nos procedimentos, os atos corriqueiros como servir chá ou até atividades como trabalhar no computador, escrever cartas ou cozinhar – todos feitos com plena atenção, com a postura do “ser iluminado” e não do “ego condicionado”. A Iluminação é praticada na convivência com os outros praticantes, na prática dos preceitos nos relacionamentos, com a supervisão de um instrutor autorizado ou de um professor formado. As atividades “comuns” acabam sendo tão importantes para o desenvolvimento da prática zen quanto a meditação sentada. Enquanto que o estudo dos ensinamentos nunca pode ser dispensado, inicialmente é deixado para um segundo momento.

Conte um pouco de sua história, o que fazia antes do budismo e porque decidiu tornar-se monja?
Nasci e fui criada nos Estados Unidos, tornei-me musicista profissional (trompista). Enquanto morava na Europa, em 1971, fui convidada a ingressar numa orquestra sinfônica brasileira. Gostei do Brasil e acabei fazendo este país o meu lar, naturalizando-me brasileira, em 1984. Como musicista, cheguei também a tocar com artistas populares como Tom Jobim e Burt Bacharach, entre outros. Sempre fui uma “buscadora espiritual”. Li o meu primeiro livro sobre o Budismo em 1969 (e me apaixonei com os conceitos budistas), mas foi somente em 1996 que encontrei a Monja Coen no Templo Busshinji de São Paulo, onde iniciei a minha prática formal do Zen. Não demorou muito tempo que percebi que esta prática e a vida de templo budista era tudo que havia procurado na vida. Pedi, e recebi a ordenação monástica, me tornando monja-noviça em 1999. Fui para o Japão no ano seguinte fazer o meu treinamento monástico no Mosteiro Feminino de Nagoya. Treinei lá durante 4 anos, onde completei a etapa de Combate de Darma, com a Aoyama Roshi como professora de treinamento. Depois passei 1 ano fazendo o meu treinamento avançado nos Estados Unidos e 1 ano como assistente da Monja Coen em São Paulo, até receber autorização de liderar grupo e ensinar, em 2006.

Quais as atribuições de uma ordenação monástica?
Com a ordenação monástica, torna-se monge-noviço, um estudante do dharma. Essencialmente, o monge-noviço deve preocupar-se exclusivamente com o seu próprio treinamento – o cultivo da mente de Iluminação. Durante esta fase, o ideal seria que o monge-noviço não sofresse distrações ou carregasse responsabilidades de lidar com o público, pois isto pode interferir seriamente com a sua própria realização e desenvolvimento como monge. O monge-noviço precisa deixar de lado as idéias românticas (ou egóicas) de “servir ao Darma” ou “servir à comunidade” até mais tarde, depois de atingir um nível de realização na sua própria prática. Tradicionalmente, é somente depois do Combate de Darma que o aluno torna-se “monge-aprendiz” (mais ou menos equivalente a um diácono na igreja católica) e começa a assumir responsabilidades de orientar os mais novos, inicialmente como um “monitor”, até receber autorização de liderar grupos e ensinar. O treinamento é finalizado com a Transmissão de Dharma, quando torna-se um monge plenamente formado. No meu caso, estou na fase final de meu treinamento e vou receber a Transmissão de Dharma do Saikawa Roshi, Superintendente para a América do Sul de nossa tradição, ainda sem data prevista devido à construção do novo prédio do Templo Busshinji em São Paulo. Nos países asiáticos, o aluno ficaria praticando sob a supervisão direta e pessoal de seu professor, inclusive morando no templo do professor, durante uns 5 a 10 anos antes de receber autorização de liderar um grupo e nos Estados Unidos é bastante comum praticantes ficaram treinando com os seus professores durante 10 ou 20 anos antes de receber Transmissão do Darma e autorização de liderar grupos. Aqui no Brasil, porém, muitas cidades não têm pessoas com treinamento adequado disponíveis para liderar grupos de prática, devido à falta de monges plenamente formados e monges-aprendizes preparados para assumir estas responsabilidades. Assim, muitos monges-noviços se vêem obrigados a carregar responsabilidades muito pesadas, sozinhos e longes de seus professores, desde muito cedo no seu treinamento. Mesmo reconhecendo os possíveis erros destes monges-noviços, agradecemos o seu heroísmo, esforço e dedicação. Tudo isto faz parte do processo de transmissão dos ensinamentos de um país para outro e são pioneiros.

O que significa o termo psicologia budista?
O Mestre Dogen, fundador de nossa escola Soto Zen, disse: “Estudar o Caminho é estudar a si mesmo. Estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo é ser iluminado pelas dez mil coisas (pelo universo inteiro)”. Os ensinamentos clássicos do Budismo são divididos em três grupos: os sutras (“palestras” de Buda), o Vinaya, ou os preceitos e regras monásticas (a moralidade) e o Abhidharma (os ensinamentos superiores ou avançados). Este terceiro grupo dos ensinamentos, pelos critérios ocidentais, pode ser chamado de “psicologia budista” ou de “filosofia budista”, pois aborda a análise profunda da natureza da mente e suas funções (psicologia) e das leis universais que governam a vida (filosofia). Este “estudar a si mesmo”, que é a prática budista, vai muito além da psicologia ou filosofia ocidental. Consequentemente, precisamos evitar perder a verdadeira essência e objetivo da prática budista ao tentar encaixá-la nos nossos conceitos ocidentais.

Hoje em dia muitas pessoas – principalmente artistas, se intitulam budistas. O que, na verdade, é ser budista?
Em princípio, ser budista seria “tomar os refúgios budistas”. Mas o que é isto, na verdade? Aqui no Ocidente ainda há muita confusão sobre o que é ser “budista” e o que é ser “Zen”. Vou falar agora do Zen para depois generalizar para o budismo como um todo. Assim, com esta confusão, acaba-se criando novas variedades de “falso Zen’ para acrescentar à lista tradicional. Temos muitos grupos de “zen hippie”, “zen narcissista”, “zen bicho-grilo”, “zen auto-didata”, “zen clube-de-meditadores”, “zen da esquerda”, etc. em lugar de uma prática de profunda auto-transformação e libertação do sofrimento. A verdadeira prática do Zen e o verdadeiro “tomar os refúgios budistas” do budismo em geral ainda estão difíceis de serem encontrados, apesar de toda a boa vontade e sinceridade de esforço de muitas pessoas. O Budismo é muito novo aqui no Ocidente e a transmissão de sua essência é um processo demorado. Na China, por exemplo, levou 400 anos, e várias gerações de professores, para a tradição se estabelecer e clarificar sua identidade independente das tradições taoístas e confucionistas. Ainda mais, um professor só poderá ensinar aquilo que o aluno está disposto e preparado para aprender. Finalmente, na transmissão do oriente para o ocidente, as diferenças culturais e linguisticas são inimagináveis e traiçoeiramente sutis. Há uma grande tendência de interpretar – inconscientemente – os ensinamentos de acordo com os presupostos de nossa cultura e através do filtro judaico-cristão, talvez com toques de “nova era” ou outras ideologias, etc. em lugar de recebe-los com o coração-mente realmente aberto. Assim, frequentemente acontece que as pessoas caem em erros de compreensão, mesmo se esforçando sinceramente na sua prática.

Como especialista na costura de vestimentas budistas, poderia falar o que sua vestimenta significa? Todos os praticantes a usam? Ou apenas monges?
As vestimentas (manto de monge e “rakusu” do praticante leigo) simbolizam os votos do praticante de viver de acordo com os ensinamentos budistas e, podemos dizer, são “consagradas” nas cerimônias de transmissão destes votos (Transmissão dos Preceitos). Tradicionalmente, sempre que possível, o próprio praticante costura, à mão, o seu “rakusu” (um espécie de mini-manto) ou kesa (manto de monge). Paralelamente, temos a costura dos outros materiais, como as almofadas de sentar zazen (zafus), etc. Estas costuras fazem parte da prática de plena atenção e convivência com o grupo. Há uma expressão que descreve a prática da costura budista japonês: “hito hari, hito hari, kokoro o komete” – ponto por ponto, colocar o coração.

Desde quando está em Porto Alegre e como tem sido esta experiência?
Mudei-me para Porto Alegre em dezembro de 2006 e tem sido uma experiência de vida bastante agradável morar nesta cidade bem mais calma – a aborizada – que a cidade de São Paulo. Me sinto realizada na minha atividade com os meus grupos de prática (Sanga Águas da Compaixão, Sanga Aikikai e Sanga Energia Harmoniosa) e “não troco eles por nada no mundo”. Sou muito grata aos praticantes que sustentem este meu trabalho. Finalmente, não sou vegetariana e, por biotipo, necessito de carne – assim, a região Gaúcha é “um prato cheio” para mim…

Quais as características da Baika, a música budista?
Ainda muito pouco conhecida no ocidente, esta música valoriza a sinceridade do canto no contexto de grupo em lugar de se preocupar tanto com a qualidade da voz. É uma música suave, meditativa, que pede plena atenção e uma entrega à energia do grupo. É bastante cultivada no Japão, com os encontros nacionais literalmente enchendo um estádio de futebol – de praticantes cantando. Ano passado, recebemos em nossa Sanga um professor-mestre de Baika do Japão pela primeira vez em Porto Alegre, e devemos ter a visita de professores-mestres Japoneses todo ano, geralmente no mês de junho.

Qual a importância do estudo formal dos ensinamentos budistas?
Desde o início do budismo, é ensinado o “tripé” dos Três Treinamentos (trishiksha no sânscrito ou sangaku em japonês). São interdependentes entre si e o cultivo de somente um ou dois destes treinamentos independentemente do(s) outro(s) não permitirá o praticante chegar à Liberação do Sofrimento (vimukti no sânscrito), ou, em outras palavras, à Iluminação.
São estes:
1. Adishila-shiksha (o Treinamento na Conduta Superior, ou treinamento da moralidade). Este treinamento é feito com o estudo e prática de viver de acordo com dos preceitos budistas. No Zen, isto é treinando especialmente na convivência com os outros membros da Sanga, nas várias atividades do dia-a-dia.
2. Adisamadhi-shiksha (o Treinamento na Meditação Superior, ou treinamento da mente). Este treinamento é realizado com a prática da meditação, que deve ser supervisionado por um instrutor ou professor formado.
3. Adiprajnya-shiksha (o Treinamento da Sabedoria Superior). Este treinamento é cultivado com o estudo dos textos clássicos budistas, os textos de mestres modernos, as palestras dos professores e pode incluir debates para testar a compreensão.
No Zen, uma parte importante do treinamento baseia-se nas atividades corriqueiras do dia-a-dia, que devem ser realizadas em acordo com a Conduta Superior (os preceitos, com todas as sutilezas de compreensão), com a plena atenção da Meditação Superior e com a Sabedoria Superior. Como parte deste treinamento, vemos uma grande diferença nos papéis dos “roshis” (mestres zen) e dos instrutores (professores, ou professores júnior). Para simplificar, podemos dizer que o papel dos “roshis” (mestres zen) normalmente é de ensinar o “vazio” e dar o exemplo de “acolhimento de todos” e “equanimidade” budistas. Normalmente seriam assistidos no seu trabalho por “instrutores”, que ocupam uma função muito “inferior”, supervisionando o dia-a-dia da prática, com seus aspectos de “forma”, cerimonial e procedimentos. Aqui no Brasil, muitos grupos nem têm “instrutores” qualificados e, outras vezes, quando podem ter um “instrutor”, devido à falta de compreensão da natureza do método do treinamento zen por parte do grupo, este pode acabar sendo rejeitado, sendo visto como um “sargento”, um “inconveniente intragável”. Desta forma, por falta de “instrutores”, muitos grupos acabam não se consolidando como centros de prática zen budista corretamente cultivada… Um amigo meu descreve esta situação como tentativas de entrar num prédio diretamente pela janela do 15o. andar em lugar de entrar pelo térreo e ir subindo andar por andar, com muitos grupos querendo ficar somente com a orientação de roshis visitantes, sem passar pelo trabalho de base, que é feito com o acompanhamento diário de instrutores treinados… Ainda não existe cadeira universitária de estudos budistas no Brasil, muitos textos importantes ainda não foram traduzidos para o português, temos poucos professores qualificados – especialmente os qualificados academicamente, e, consequentemente, temos muito trabalho pela frente. Tendo isto em mente, é a nossa boa fortuna poder receber a visita do Professor Joaquim Shaku Shoshin Monteiro, monge da tradição Terra Pura Japonesa, e doutor em Estudos Budistas pela Universidade de Komazawa, no Japão. Ele estará em Porto Alegre pelo terceiro ano consecutivo para ministrar aulas teóricas sobre os ensinamentos de Buda para o nosso grupo. Em fevereiro, o professor Monteiro dará seguimento ao estudo da Psicologia Budista e da Consciência, no retiro que a nossa Sanga realizará no período do feriado de Carnaval.

Entrevista: Compaixão é sentir com amor

maio 2, 2008 às 11:57 pm | Publicado em Blogroll, Compaixão Zen Budista, Entrevista, Meditação em Porto Alegre, Prática Zen Budista, Preceitos Budistas, Revistas - Artigos e Entrevistas, Zen Budismo em Porto Alegre | 3 Comentários

Entrevista publicada recentemente na Revista Bem Estar do jornal Diário da Região (São José do Rio Preto, SP):

Entrevista

Compaixão é sentir com amor

São José do Rio Preto, 6 de abril de 2008
Renata Fernandes

Compaixão, compaixão e compaixão. Essa foi a resposta do francês Matthieu Ricard, considerado o homem mais feliz do mundo, ao ser questionado sobre qual a principal lição que aprendeu com o líder espiritual tibetano Dalai Lama, de quem é co-diretor e tradutor pessoal desde 1989. A entrevista foi publicada na edição de aniversário da revista Bem-Estar no dia 23 de março.
Ao pesquisar o significado da palavra compaixão nos dicionários, é possível verificar a associação da mesma a piedade. No entanto, compaixão não tem a ver com pena, dó. Compaixão está associada ao amor, não julga e necessita de sabedoria espiritual.
Para explicar melhor o que é e como exercitá-la, a revista Bem-Estar traz entrevista exclusiva com a monja Isshin Havens, orientadora espiritual da Sanga Águas da Compaixão de Porto Alegre e membro colaboradora do Colegiado Buddhista Brasileiro. Confira a seguir.

Bem-Estar – Qual a diferença entre piedade (pena) e compaixão? Por que há quem confunda?
Monja – Do ponto de vista budista, a compaixão (karuna em sânscrito e pali) é o desejo que todos os seres – incluindo eu mesmo – possam estar livres de sofrimento. Há um elemento de igualdade essencial ou respeito mútuo básico entre eu e os outros seres devido à interdependência. Envolve a compreensão livre de julgamentos do outro. É considerado um dos Quatro Estados Sublimes (ou Os Quatro Incomensuráveis) a serem cultivados na nossa prática. Os outros três são: Amor-bondade, Alegria-altruísta e Equanimidade (igualdade de ânimo tanto na desgraça quanto na prosperidade). A piedade, ou pena, por outro lado, carrega um certo ar de superioridade e até desdém. Não é fácil chegar à percepção correta da interconexão de todos os seres e, conseqüentemente, à prática da verdadeira compaixão. Vivemos presos à delusão da separatividade, cultuamos a nossa individualidade e vivemos um profundo isolamento interno. Assim, nos percebendo como ‘separados’ dos outros seres, dificilmente podemos nos reconhecer como essencialmente ‘iguais’. Desenvolvemos certa arrogância ou sentimento de sermos ‘especiais’ – que pode se expressar tanto no sentido ‘sou especial, superior aos outros’ quanto no sentido ‘sou especial, inferior aos outros’. Perdidos nessa delusão, fica praticamente impossível desenvolvermos a verdadeira compaixão. E fica igualmente difícil compreender a diferença entre compaixão e pena.

Bem-Estar – Na sua opinião, qual a melhor forma de ‘experimentar’ compaixão?
Monja – A prática budista é especializada no desenvolvimento da compaixão por meio dos três treinamentos: o estudo dos ensinamentos budistas, preferencialmente com o acompanhamento de um professor do Darma; a moralidade (os preceitos budistas) aplicada na convivência diária e a meditação correta. À medida em que a pessoa reconhece vivencialmente a interdependência, tende naturalmente a abrir o coração com compaixão. Mas, para chegar à verdadeira compaixão é preciso também cultivar a sabedoria espiritual, pois a sabedoria e a compaixão são como as duas asas de um pássaro – ambas são necessárias para o correto funcionamento da outra.

Bem-Estar – Qual a relação entre o amor e a compaixão?
Monja – Primeiro temos de esclarecer o que é o amor. Será que é esse amor romântico e possessivo que a gente vê nos filmes? No budismo cultivamos o amor-bondade (metta em pali, maitri em sânscrito), o desejo de que todos os seres sejam felizes – todos sem exceção. Tendemos a confundir sentimentos de apego, posse, sensualidade e desejo de controlar com amor. Acreditamos amar quando na realidade queremos agarrar e segurar perto de nós uma outra pessoa, por acreditar que ela nos trará felicidade. Tentamos controlar as ações de nossos filhos, por exemplo, em nome de ‘amor’. Mas, o amor-bondade verdadeiro se baseia no respeito ao outro, é incondicional e exige um tipo de desapego. O desapego não significa indiferença. Gosto de usar a imagem de estar com um ser pequeno na palma da mão. Se ficarmos com a mão fechada o outro não pode escapar, mas também não pode respirar. Se ficarmos com a mão aberta dando apoio e liberdade o outro pode respirar e se movimentar livremente. No entanto, temos de confiar que esse ser vai livremente escolher estar junto com a gente – pelo vínculo do amor (desapego). O amor-bondade prefere que o outro esteja com a gente somente por livre escolha e nunca por medo, obrigação ou qualquer outro tipo de manipulação. Amor-bondade e compaixão são sentimentos ‘vizinhos’. O amor que deseja a felicidade e a compaixão que deseja que o outro seja livre de sofrimento. Pode-se dizer que são aspectos de um mesmo sentimento de bondade e benevolência profundo.

ler a reportagem completa

A vida é uma grande rede – Revista Diálogo

abril 14, 2008 às 7:02 pm | Publicado em Blogroll, Meditação em Porto Alegre, Prática Zen Budista, Revistas - Artigos e Entrevistas, Uncategorized, Zen Budismo em Porto Alegre | 1 Comentário

Neste artigo que escrevi ano passado, a realidade das interconexões entre todos os seres é exemplificada com o que nos parece um simples pedaço de pão, tão presente diariamente em nossas vidas. Aparentemente é o mais humilde dos alimentos, mas vamos aprender a olha-lo com mais profundidade.

Foi o que me propus fazer neste artigo, publicado pela Revista Diálogo, ed. 48 em outubro, 2007.

Durante a maioria das refeições, nos mosteiros zen-budistas japoneses, os monges recitam versos das cinco contemplações. Um desses versos pode ser significativo para qualquer pessoa, independentemente da religião:

As Cinco Contemplações

Primeiro – Inumeráveis trabalhadores nos trouxeram esta comida. Devemos saber como ela chega até nós.
Segundo
– Devemos considerar se nossa virtude e prática a merecem.
Terceiro
– Como desejamos a condição natural da mente, para estarmos livres de apegos, precisamos estar livres de ganância.
Quarto
– Como um bom remédio para manter nossas vidas, aceitamos esta comida.
Quinto
– Para alcançar a iluminação, agora comeremos.

Amanhã, ao comer o seu pão, que tal pensar no verso: “Inumeráveis trabalhadores nos trouxeram esta comida”? Imagine: o caixa da padaria; a pessoa que embalou o pão; quem o colocou no forno; o motorista que trouxe a farinha, o leite e os outros ingredientes; as pessoas que venderam os ingredientes à padaria; as que moeram o trigo, pasteurizaram o leite, prepararam os outros elementos; os motoristas que transportaram as matérias-primas até as fábricas; os trabalhadores rurais que plantaram e colheram o trigo e cuidaram das vacas produtoras do leite; os fabricantes, os vendedores e toda a rede de pessoas envolvidas na fabricação do maquinário que foi usado no plantio e na colheita; os pássaros, as minhocas e todas as pequeninas criaturas que contribuíram para a produção do alimento das vacas, toda a rede ecológica, que faz o trigo crescer; a chuva, o vento, o sol, a própria terra… Todas estas pessoas, todas estas criaturas, tudo isto – e muito mais – são indispensáveis para que você saboreie o seu pão matinal.

A Rede de Brama

Ao ler esta página, imagine as pessoas, as plantas, os microorganismos, os ele mentos naturais, que fizeram esta revista chegar até você, começando pela chuva, o sol e a terra, necessários ao crescimento da árvore que virou papel. E você, ao ler a revista, também entrou na rede e se conectou com todos estes seres. Tudo é vida: nós, o universo que pulsa, vibrante, sagrado. Tudo está interconectado, interligado, tudo é Um. Todos, formamos uma grande rede, inseparável. O Sagrado se manifesta em sua plenitude.

O budismo dá a esta realidade o nome “Rede de Brama”. E ensina que, em cada nó da rede, existe uma pérola – cada ser vivo é uma pérola nesta rede. Ensina mais ainda, em cada pérola, refletem-se todas as outras pérolas. Dentro de você, existe o reflexo de todos os seres do universo. E o brilho que você emite se reflete também em todos eles! Somos parte da Rede de Brama – a vida sagrada do universo. Esses ensinamentos milenares agora estão sendo confirmados pela Ciência e pela Ecologia, pois ambas demonstram como toda a vida este interconectada e é inseparável. Nenhuma criatura existe isoladamente. A borboleta não está separada de mim. Eu também não estou separada da borboleta.

A Rede de Brama significa que eu tenho todas as pessoas refletidas dentro de mim. Eu nasci como sou: com o meu sexo, cor de pele, cor de cabelo e de olhos, por uma questão de genética, mas eu teria o potencial para nascer como qualquer outro ser humano. Se eu tivesse recebido dos meus pais outros genes do tesouro genético, eu poderia ter nascido com cabelo diferente, por exemplo. Por isso, não há diferença real entre as variantes raciais. Todos os seres humanos têm os mesmos sonhos, os mesmos amores, o mesmo desejo de felicidade.

Trago em mim o potencial humano completo. Tenho determinadas características hoje, porque as causas e as condições da minha vida me levaram a desenvolver certas potencialidades e deixar outras latentes. Contenho o mesmo potencial de ser de qualquer outra pessoa. Por isso, não posso julgar ninguém. Não há por que me considerar superior nem inferior a quem quer que seja.

O budismo ensina que, por sermos todos conectados, tudo o que causamos aos outros seres se reflete em nós mesmos. Se eu abater uma árvore, estarei diminuindo a minha própria reserva de oxigênio. Se eu maltratar uma pessoa, estarei maltratando a mim mesmo, pois não há separação real entre mim e ela. Somos todos elos da única rede, gotas da mesma água, ondas de um só oceano.

O caminho da compaixão

Por sermos todos um com todos, o caminho de vida apontado pelo budismo ‚ a compaixão, o “sentir com” as outras criaturas. Sentir com os ursos-polares, os tubarões, os golfinhos, as borboletas, as vacas, as guias, os cavalos, as galinhas. Sentir com as alfaces, as árvores, as cenouras… Sentir com as minhocas, as joaninhas. Sentir com as pessoas de pele escura ou clara, de olhos azuis ou castanhos, de cabelo liso ou crespo. Sentir com as pessoas das mais variadas culturas, que falam outras línguas, que têm outros costumes, que talvez eu não entenda. Sentir com ricos e pobres, jovens e anciãos. Sentir com todas as pessoas, até compreender que todos somos iguais – amando, rindo, chorando, sonhando -, todos nós desejamos uma vida de paz.

O zen budismo celebra a vida. Considera o Nirvana um estado de graça, de paz e tranqüilidade no presente. Pratica a meditação, estuda os ensinamentos budistas e procura os preceitos que conduzem ao Nirvana aqui, agora, vivendo plenamente a vida – de acordo com o Caminho do Meio, sem extremos de bem-estar nem de austeridade. O Caminho do Meio ‚ também chamado Nobre Caminho ou Nobre Caminho Óctuplo, pois propõe oito atitudes em vista da libertação e da iluminação: entendimento correto, pensamento cor reto, fala correta, ação correta, meio de vida correto, esforço correto, atenção correta e concentração correta.

Em um texto chamado “Instruções para o Cozinheiro Chefe”, o fundador da escola Soto Zen japonês orienta o seguidor do zen-budismo a desenvolver “três mentes”: a mente magnânima ou generosa, a mente parental e a mente da alegria. Com a mente magnânima, agradecemos pelo nosso sustento. Com a mente parental, cuidamos de todos os seres: pessoas, animais, plantas e a própria terra. E com a mente da alegria, desfrutamos a vida de forma saudável e sustentável.

Posso praticar o desenvolvimento das três mentes, começando com os versos das cinco contemplações: lembrando-me dos seres que contribuíram para a minha alimentação, refletindo sobre os meus pensamentos e ações, livrando-me da ganância e da raiva, alimentando-me com gratidão, para sustentar a minha vida e ser uma pessoa melhor, repleta de sabedoria e de compaixão.

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