Comprando o Dharma

agosto 24, 2014 às 5:22 pm | Publicado em Professor de Darma Zen Budista, Revistas - Artigos e Entrevistas | 2 Comentários

Como conciliar nossos papéis como consumidores e praticantes budistas?

Bhikshuni Thubten Chodron

A cultura do consumo gerou uma classe de consumidores espirituais que trazem seus instintos aquisitivos para a prática do dharma.

Quando nos voltamos para a espiritualidade, podemos pensar que estamos deixando a corrupção do mundo para trás. Mas as nossas velhas maneiras de pensar não desaparecem; elas nos seguem, colorindo a forma como abordamos a prática espiritual. Uma vez que todos fomos criados para sermos bons consumidores – para obter o máximo ao pagar o mínimo -, como estudantes e professores de dharma levamos nossa mentalidade de consumidor direto para nossa prática espiritual.

Como é que o consumismo se manifesta por parte do aluno? Em primeiro lugar, nós vamos às compras em busca do melhor – o melhor grupo, o professor mais realizado, a prática mais elevada. Nós vamos deste lugar para outro, buscando o melhor produto espiritual para “comprar”. Queremos os mais altos ensinamentos, por isso ignoramos as práticas fundamentais. Visualizando-nos como discípulos totalmente qualificados, não vemos muita necessidade de práticas básicas, tais como disciplina ética e contenção dos nossos sentidos; em vez disso, saltamos para o caminho mais avançado.

Como consumidores, nós queremos ser entretidos. Vamos a um centro enquanto o professor é divertido, mas quando ouvimos os mesmos ensinamentos seguidas vezes, a gente se enjoa e busca pelo exótico. Vindo da tradição tibetana, posso dizer que o budismo tibetano nos favorece. Enquanto no Tibete muitas dessas práticas e acessórios são parte da cultura e não vistos como exóticos, no Ocidente se tornaram assim. Há tronos elevados para os professores, panos de brocado para cobrir os assentos e mesas, vestimentas, trompas longas, trompas curtas, sinos, tambores, procissões, recitação em tom grave e, oh sim, chapéus! Os amarelos, os vermelhos, pretos. Com tal parafernália, como poderia alguém em algum momento ficar entediado praticando o budismo tibetano? No entanto, depois de um tempo, tudo isto fica velho, e ficamos com a nossa própria mente, nosso próprio sofrimento. Tendo pouca resistência ou compromisso com a nossa prática ou nossos professores, buscamos um novo estímulo. Nós deixamos de notar que os nossos professores ainda fazem práticas fundamentais e participam de ensinamentos básicos dados por seus mentores espirituais. Nós nos recusamos a ver que a repetição pode ser exatamente do que precisamos ou que explorar a razão do nosso tédio poderia produzir novos insights.

A cultura do consumo é pautada por gratificação instantânea. Dizemos que queremos um relacionamento próximo de um mentor espiritual, mas quando a orientação do mentor desafia nossos desejos ou fisga demais o nosso ego, deixamos de segui-lo. No início da nossa prática, nós professamos ser buscadores espirituais sinceros, em busca da iluminação. Mas, depois da prática sanar nossos problemas imediatos – a precipitação emocional de um divórcio, o luto pela perda de um ente querido, ou os inumeráveis contratempos da vida -, nosso interesse espiritual desaparece, e mais uma vez buscamos a felicidade em bens, relacionamentos românticos, tecnologia e carreira.

No passado, os aspirantes espirituais enfrentavam dificuldades para encontrar professores. Tibetanos atravessaram os Himalayas para encontrar mentores sábios na Índia; Chineses cruzaram o deserto de Takla Makan e as montanhas Karakoram para visitar monastérios e trazer de volta escrituras da Índia. Mas nossa atitude consumista nos levou a esperar resultados com pouco esforço. Nós pensamos: “Por que devemos viajar para ouvir ensinamentos? Nosso professor deveria vir a nós! Temos trabalhos, famílias, vidas tão ocupadas. Não temos tempo para atravessar a cidade, muito menos para ir a outro continente”. Ao esquecermos que o esforço e o empenho do buscador o abrem para os ensinamentos, nos ressentimos de que nossa prática espiritual possa violar as nossas preferências.

Além disso, receber ensinamentos ou fazer práticas espirituais leva tempo, o qual não temos. Pedimos aos nossos professores que “modernizem” os ensinamentos e práticas – para encurtá-los e simplificá-los – para que eles convenientemente se ajustem às nossas vidas. Como consumidores funcionando em um mundo de oferta e demanda, levamos nosso negócio a outro lugar se nossos desejos não são satisfeitos. Budistas asiáticos fazem oferendas para a comunidade monástica para acumular méritos que tragam um bom renascimento. Olhando para eles, nós ocidentais dizemos: “Eles estão fazendo negócios espirituais. Eles estão praticando dana – generosidade – para conseguir algo para si mesmos”. Pensando que somos superiores aos asiáticos que seguem antigas tradições, não contribuímos à comunidade monástica. Agarrando-nos à nossa ética no trabalho, queremos que pretensos favorecidos saiam e consigam um emprego.

E quando ofertamos dana, qual é a nossa atitude? No fim de um retiro, alguém dá uma “palestra sobre dana”, dizendo que dana é generosidade espontânea, mas que devemos pensar em tudo que recebemos do professor, que tem uma família, um carro, uma hipoteca, contas de cartão de crédito, e precisa de nosso apoio financeiro. Dana não se tornou então uma outra maneira de se pagar por serviços prestados? Ao nos empenharmos em cálculos mentais rigorosos para determinar que quantia é razoável para tais serviços, perdemos o propósito de dana, que é se deleitar em presentear e dar de coração. Devemos dar porque queremos ser livres do estorvo da avareza, apreciar o dharma, querer que outros possam ouvir os ensinamentos, e desejar apoiar os praticantes que vivem de forma simples e dedicam seu tempo à pratica e estudo espirituais.

Consumismo alimenta o egocentrismo, e nossa prática espiritual se centraliza no eu, minhas necessidades, minhas preferências, o que funciona para mim. Pensamos: “O que posso conseguir com isso? Como isso irá me beneficiar?”. Então, um centro de dharma, templo, ou monastério se torna um lugar para onde vamos para receber, e não oferecer. Se pensarmos que uma atividade não atende nossas necessidades, não temos tempo ou dinheiro para apoiá-la. Eu visito com frequência um templo asiático onde pais e pessoas que não têm filhos trabalham na cozinha durante o acampamento de verão do dharma para crianças. Por quê? Porque eles gostam de ser uma parte da comunidade. Eles se importam com as crianças e com o futuro da sociedade. Eles querem apoiar atividades que beneficiam outras pessoas. Oferecer é parte de sua prática espiritual, e eles gostam.

Em uma sociedade consumista, nós obtemos status por usar certos produtos. Ser próximo de um professor famoso exalta o status espiritual de um aluno. Fazer com que o professor fique em nossa casa, dirija nosso carro, abençoe nossos objetos religiosos, ou assine uma foto eleva nosso status. Um dos melhores jeitos para se aproximar de um professor é ser um grande doador, obrigando os professores a nos ver para que mostrem sua apreciação. Não queremos doar anonimamente e perder uma possível recompensa.

Nós também conseguimos status possuindo objetos espirituais valiosos. Compramos estátuas bonitas, pinturas requintadas de figuras religiosas e belas fotografias de nossos professores, as quais colocamos em um altar elaborado em nossa casa. Quando nossos amigos espirituais nos visitam, fazemos com que eles admirem nossa coleção de artefatos, mas quando nossos parentes nos visitam, nós discretamente os cobrimos para evitar suas perguntas. Temos os livros espirituais mais atuais (preferencialmente autografados pelo autor), uma almofada confortável para meditação e o requisitado rosário (feito de cristal ou pedra, não de plástico, e abençoado por um ser sagrado).

Além disso, colecionamos eventos espirituais. Podemos divulgar uma lista de retiros ou iniciações de que participamos. Tornamo-nos conhecedores de centros de retiros, os quais avaliamos para os novatos. Gabamo-nos de ouvir um grande número de ensinamentos de professores famosos. E damos tapinhas em nossas costas por sermos praticantes tão sinceros. (Segue)

 

Tradução livre do grupo “Tradutores do Zen” (colaboraram neste texto Josiane Paula Borges e Emerson Ricardo Zamprogno; supervisão de Isshin-sensei; revisão ortográfica de Rodrigo Daien). Texto originalmente publicado no site http://www.tricycle.com, de autoria de Bhikshuni Thubten Chodron.

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2 Comentários »

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  1. Gasshô

  2. Muito obrigado!


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